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Uma questão de ângulo

Atualizado: 12 de mar. de 2024



Ana Marta e Carlos Paulo formavam um simpático casal de reformados, embora demasiado reservado. Durante 30 anos, nunca ninguém do Bairro da Picha Morta soube nada acerca da sua vida, até ao dia em que as suas vozes soaram mais alto, no 1º andar do número 69.

— Despacha-te, Carlos, vamos atrasar-nos para a consulta! — Ana andava em círculos no meio da sala, como uma barata tonta. — Duas horas, e nada! Não hei-de eu estar aflita das minhas pernas.

— Se não te pusesses a ler, enquanto fazíamos amor, nada disto tinha acontecido!

— Demoras tanto tempo, que tenho de me ocupar com alguma coisa. — reclamou ela, ao pensar na frustração da noite anterior.

— Vamos embora, a Dra. Vaigina está à nossa espera — lembrou Carlos.

Enquanto isso, vários moradores ouviam a discussão junto à janela aberta. Alguns conheciam bem o casal, outros só de vista, mas todos tinham algo a dizer:

— Haja alguém que faça jus ao nome do nosso bairro! — disse o Sr. Aníbal, do 5º andar.

— Pobre homem, 66 anos e já sem forças — comentou a Sra. Olímpia, do prédio em frente.

Ana e Carlos correram pela porta, atrasados para o encontro com a sexóloga, porém, ao saírem do prédio foram cercados pela multidão, que os impedia de movimentar-se.

— Quero agradecer-lhe por representar tão eficazmente o nosso bairro — cumprimentou o Sr. Aníbal, dando a Carlos um vigoroso aperto de mão. — Espero que a médica o ajude, embora ache que o seu mal já não tenha remédio — estimou ele, encolhendo os ombros.

Vendo a janela aberta, Carlos percebeu o alarido à porta do prédio, e agradeceu, um tanto envergonhado, esperando que a confusão terminasse por ali, o que não aconteceu:

— A sua esposa pode vir para os meus lados, se quiser. — sugeriu um morador do Bairro da Perna Aberta, que por ali passava.

— Só lamento pela sua mulher — opinou a Sra. Olímpia.

Aproveitando a deixa, Ana Marta virou-se para ela, ávida por queixar-se a alguém da fraca prestação do companheiro.

— O problema do Carlos é a maldita lentidão, e ontem nem deixou o leite ferver e transbordar para fora, como eu gosto. Nem uma só pinguinha para adoçar o paladar. E, só de falar nisso, vem-me o gosto à goela. Já experimentou?

A Sra. Olímpia olhou em redor, certificando-se que ninguém as ouvia, e abanou a cabeça em sinal de concordância. Já Carlos, descrevia, eufórico, as intimidades com a esposa, despreocupado com o julgamento dos presentes. Ambos pareciam ter-se esquecido da consulta marcada, de tão distraídos que estavam.

A hora passou, mas o casal nem se importou, brotando felicidade pelos poros. Gostaram tanto do convívio, que prometeram voltar a reunir-se.

No dia seguinte, Carlos acordou e saiu logo para a rua, com um olhar estranho. Ao avistar o Sr. Aníbal correu ao seu encontro, para lhe dar a novidade:

— A partir de hoje, o nosso bairro passará a chamar-se Bairro da Picha Viva.

— Aconteceu um milagre! — exclamou o outro, admirado.

— Nada disso, vizinho, só mudei de buraco.


@Maria João Amaral Graça

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Maria João Amaral Graça

Escrever é uma forma de expressar os nossos pensamentos e sentimentos. Ao partilharmos as nossas histórias, inspiramos e motivamos quem lê as nossas palavras.  Cada história é única e merece ser contada.

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MARIA JOÃO AMARAL GRAÇA

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Mulher, tutora e escritora. O segredo? Perseverança. O meu objetivo é contar as minhas histórias a outras pessoas que partilham da mesma paixão que eu, e poder incentivá-las a soltarem as palavras presas nas gavetas.

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