CRIME EM NELAS
Atualizado: 12 de mar.
O Thriller é outro género que gosto bastante. O meu desafio consistiu em encontrar um acontecimento real e transformá-lo num thriller. Pode ver a notícia original AQUI
Eu não quero acreditar. Deitado, parado, sinto cada nervo formigar, tentando descobrir como vim aqui parar. O que pode ter corrido mal. Tento resgatar as memórias para saber porque não estou eu em casa. Porque esta, definitivamente, não é a minha casa. Mesmo que outros digam o contrário. Oiço pessoas a falar. Não consigo ouvir o que dizem, mas ouço o murmúrio de vozes ao meu redor. Estou na cama, mas é a cama errada. É muito estreita. E o cheiro deste lugar é estranho. Posso sentir o odor de suor e de culpa. É o cheiro de uma cadeia. Sim, agora lembro-me do dia em que entraram pela casa dentro, encostaram-me à parede e levaram-me algemado. É difícil esquecer aquelas palavras: "Senhor Álvaro Rodrigues, o senhor está preso pelo homicídio de José Ferreira. Tem o direito de ficar calado. Tudo o que disser pode e será usado contra si em tribunal”.
***
Nessa manhã acordei com os nervos em alta. A primeira sessão com o advogado, nomeado pelo tribunal. Parecia muito jovem, com a postura confiante de quem acaba de sair da universidade, certo de conseguir acabar com as injustiças do mundo.
— Doutor António Santos, estou aqui para defendê-lo. Li o seu processo e nada abona em seu favor. Para além da acusação de homicídio, também está indiciado por tráfico de drogas. Segundo o relatório da GNR de Mangualde, foram apreendidas na sua casa cinco doses de cocaína, quarenta de heroína, cannabis, dois computadores, um automóvel, uma carteira profissional e um distintivo de um agente da PSP — o advogado pousou o relatório e com uma expressão sóbria, concluiu — a situação é complicada.
— E diz aí nesses papéis, que toda essa droga estava na minha posse?
— A habitação do seu colega foi igualmente revistada, contudo não encontraram nada. Há oito meses que a GNR vos investiga, mas só agiram devido a uma denúncia anônima.
— É evidente que alguém quer me ver deste lado — dei um murro na mesa, descontrolado — você não pode deixar-me apodrecer aqui.
O advogado fez sinal ao guarda para não intervir e disse com a voz tremida:
— Acalme-se, por favor. Não adianta exaltar-se. Preciso que me conte tudo, sem omitir nada, ok?
— Desculpe, doutor. Nunca imaginei vir a ser preso aos quarenta e oito anos, por um crime que não cometi.
— Conhecia a vítima, senhor Rodrigues? — perguntou ele.
— Vamos deixar de lado o senhor. Trate-me por Álvaro. E, não. Não o conhecia de lado nenhum.
— Seria familiar de algum cliente insatisfeito? Pode ter sido um ajuste de contas — o advogado tentava encontrar uma possível relação entre os dois crimes.
— Acho pouco provável, doutor.
— Vou precisar de nomes e moradas. Vamos começar por aí — ele puxou de um bloco de notas da pasta e olhou para mim, expectante.
Alguns dos meus clientes ocupam cargos importantes no Estado e pagavam pela minha descrição, mas se me reduzissem a pena, talvez pudesse colaborar. Expliquei-lhe que ia buscar a droga ao Porto, uma operação rápida, com a ajuda do crachá de agente da PSP e que a vendíamos depois a clientes habituais, uns de Mangualde, outros de Nelas e Viseu.
— E o seu parceiro, Fernando Ferreira? — perguntou o advogado.
— Acompanhava-me até ao Porto e ajudava-me a carregar o carro. O resto fazia eu, sozinho — menti, para o proteger, convicto que ele faria o mesmo por mim.
— Existem provas que ele também guardou uma parte do último roubo, feito há três dias. Como explica que só tenham encontrado droga, na sua casa.
— Pois, não sei — mas sabia. Sabia que ele era a única pessoa com acesso ao meu apartamento, porque eu próprio lhe dei umas chaves. Só não entendia a razão.
— Onde estava, na noite em que Francisco Ferreira foi morto? — indagou o advogado.
— Por aí, não me recordo. Eu não matei esse rapaz, doutor. Tem de acreditar em mim.
— Eu acredito em provas, Álvaro, e a verdade é que a arma do crime encontrada no local está registrada em seu nome, com as suas impressões digitais — o advogado encostou-se na cadeira, preocupado — Vai ter de me dar mais alguma coisa.
***
Ele esperava de pé, numa sala com meia dúzia de prisioneiros reunidos com possíveis familiares, sob o olhar atento dos guardas. Senti-o agitado. Não se quis sentar.
— Que surpresa, Fernando — estendi-lhe a mão, que rejeitou.
— Como foste capaz de matar o meu irmão? Era ainda uma criança — acusou-me ele, com uma expressão diabólica.
— Teu irmão? Que história é essa?
— Trocava sem pensar os meus trinta e oito, pela sua vida. Espero que morras na cadeia — a dureza das suas palavras deixou-me sem chão.
Voltei para a cela, abalado. Quando pensamos que conhecemos bem uma pessoa é quando nada sabemos sobre ela. Foi a última vez que o vi.
***
Mais uma noite mal dormida, no estabelecimento prisional de Viseu, atormentado pela ideia que iria passar longos anos numa cela. Até o meu quarto é maior. Na mesma ala, traficantes, assassinos e violadores cumprem as suas penas, resignados, como se esta tivesse sido sempre a sua casa. Estranhamente, recebi uma ligação. "Talvez seja a minha filha" supus, enquanto caminhava até ao telefone.
— Quem fala?
— Eu sei que esteve com o rapaz morto em Nelas, no dia em que ele morreu — disse alguém com uma voz distorcida.
— Quem é que fala? O que quer de mim?
— Meio milhão de euros, para não contar o que vi — responderam, do outro lado da linha
— Isso é muito dinheiro!
— Lamento…por si.
— Não pode ter visto nada — disse eu, com a voz trêmula, receando que a conversa estivesse a ser ouvida.
— Você vai-se arrepender — e ouvi o som da chamada a desligar.
Quem tentava aproveitar-se da minha fragilidade? Eu não aceitava que Fernando fosse capaz de um esquema tão perverso, para se vingar da morte do irmão. Ou seria? Teria sido alguém que me tivesse visto lá? Regressei à cela ansioso. Não podia esconder por mais tempo, o que realmente se passou naquela noite.
***
— Pediu que viesse com urgência, o que aconteceu? — perguntou o advogado, surpreso.
— Tenho algo a confessar.
— Bem me pareceu — o jovem doutor sentou-se à minha frente e sacou o habitual bloco de notas — sou todo ouvidos.
— O Fernando acusa-me de ter morto o irmão e depois recebi uma ligação misteriosa — contei-lhe o sucedido.
— Suspeita do seu colega?
— Não sei o que pensar … Para poder entender as minhas dúvidas, teria de partilhar algo, difícil para mim.
— A vossa relação vai além da amizade, é isso? — a perspicácia do jovem conquistou-me. Sempre me fascinaram pessoas inteligentes.
— O Fernando começou a frequentar a minha casa, dois anos antes de me separar, mas andava sempre de volta da minha ex-mulher, coisa que nunca me incomodou. Fui casado durante vinte anos, mas não tinha amor nem tesão por ela. Já quando estou perto dele, sinto um fogo anormal a queimar-me. Entende?
— Não, não entendo — o advogado afastou-se, não tirando os olhos dos meus, e perguntou — o Fernando sabia dos seus sentimentos por ele?
— Desconfiava. Há um mês atrás houve uma troca de olhares intensa, quando a minha mão tocou a dele, sem querer. Ficou tão constrangido, talvez por isso me tenha avisado “Se souberem disto, és um homem morto”. Claro que nunca contei a ninguém.
— Álvaro, eu necessito de lhe perguntar: matou aquele rapaz?
— Não, doutor. Eu ia ao seu encontro nessa noite, sem saber que era o irmão do outro, mas não apareceu à hora combinada, por isso fui-me embora. Pelos vistos, chegou atrasado, alguém lhe limpou o sebo e quis me incriminar.
— Só me diz isso agora, Álvaro. A audiência é daqui a sete dias e a situação não é nada favorável. A não ser que surja milagrosamente uma testemunha, prepare-se para os vinte e cinco anos — senti derrotismo no seu tom de voz.
— Vamos ter fé, doutor.
***
Chegou finalmente o dia que poria fim a uma semana atribulada, marcada pela inquietude, raiva e desespero. Ninguém me visitou, nem mesmo o advogado, levando-me a pensar que tinha desistido, por ser um caso perdido. Desconhecia o que se passava lá fora, e isso estava a dar cabo de mim.
Três horas da tarde. A porta da cela abriu-se e um guarda algemou-me em silêncio. A sala de audiências era fria e desconfortável. Mandaram-me sentar. Do meu lado direito, numa outra mesa, o advogado lia com um ar sério, o meu processo. “Estou fodido" pensei, ao notar as suas mãos trêmulas.
— Vamos dar início ao processo número 7605819 em que é arguido o senhor Álvaro Rodrigues, acusado de tráfico de drogas e homicídio premeditado — o juiz pediu-me que contasse a minha versão. Assim o fiz. Confessei ser culpado de roubar e vender droga, mas não de assassinar alguém.
— Se não foi o senhor que matou o jovem de vinte e três anos, como justifica que a arma encontrada no local seja a sua? — perguntou-me a procuradora do ministério público, com uma arrogância exagerada.
Fiquei em silêncio durante alguns segundos. Não me sentia bem. Olhei para o advogado, que adivinhando o meu dilema, fez-me um ligeiro sinal de concordância com a cabeça.
— Alguém que sabia onde guardava a minha arma entrou no meu apartamento.
— Um conhecido seu, então? Desconfia quem tenha sido? — a pergunta que eu temia, mas da qual era impossível fugir.
— Sim… Fernando Ferreira — respondi, esmorecido.
O juiz deu a vez ao advogado de defesa, que se levantou e disse:
— Meritíssimo Juiz, gostaria de chamar já a testemunha senhora Pilar Sampaio.
Eu não queria acreditar quando vi a minha ex-mulher entrar na sala de audiência. Olhei para o advogado, que de repente pareceu-me determinado, capaz. Pressenti que algo de bom estava prestes a acontecer. Ela sentou-se, timidamente.
— Senhora Pilar Sampaio, pode indicar-nos se o homicida de José Ferreira encontra-se nesta sala? — perguntou o meu advogado.
— Não. Ele não está aqui. O meu ex-marido é inocente.
— Gostaria que descrevesse aos demais presentes, o que viu na noite em que o crime ocorreu.
— Eu mantenho um relacionamento com o irmão da vítima há cinco anos. Conhecemo-nos quando ainda era casada com o Álvaro — dito isto, olhou para trás, insegura da minha reação. Sorri-lhe. Afinal, eu estava-lhe grato. Ela continuou o depoimento — Acontece que o Fernando tem-se mostrado distante de há uns meses, para cá. Começou a recusar os meus carinhos, deixou de me procurar à noite, cheguei a pensar que podia ter outra mulher. Um dia entrou em casa, furioso, porque me viu a conversar com o irmão. Acusou-me de o trair. E saiu porta fora.
— A senhora Pilar teve algum tipo de envolvimento com a vítima? — perguntou o advogado.
— Nunca faria tal coisa ao meu Nando. O irmão tentou agarrar-me, sim, no meio da rua, mas eu o empurrei. Talvez ele tenha visto e percebido tudo errado. Só sei que antes de sair de casa, disse-me "Por ti, vou fazer um disparate". Não imagina o meu desespero ao ouvir aquilo. Pressenti que ia fazer porcaria e segui-o. O irmão estava sentado num banco, ele aproximou-se e deu-lhe um tiro na testa. Foi tão rápido, que nem pude fazer nada — ela chorava, enquanto denunciava o homem que amava. Pude sentir a angústia e o sofrimento na sua voz.
— Falou com Fernando Ferreira, nessa noite?
— Sim. Perguntei-lhe onde arranjou a arma. Disse-me que era do Álvaro, que a tinha trazido para se defender. Agora vejo, que foi tudo planejado.
— Senhora Pilar Sampaio, tem conhecimento de um telefonema feito ao meu cliente a exigir um milhão de euros?
— Também foi o Fernando. Ele sabia do encontro dos dois, em Nelas. Ligou ao irmão a dizer que o Álvaro ia mais tarde, só para chegar atrasado. Não havendo testemunhas, podia incriminá-lo e ainda sacar-lhe dinheiro.
— Meritíssimo juiz, penso que não há dúvidas de quem seja o verdadeiro assassino — concluiu o advogado, com o semblante vitorioso.
"Conseguimos, Álvaro" disse-me o jovem doutor, uns dias depois do julgamento, durante uma visita. Ainda hoje estou para saber como deu a volta à minha ex-mulher, mas isso agora já não interessa. Cinco anos não é mau, para quem podia ter apanhado vinte e cinco.
@ Maria João Amaral Graça - Fevereiro 2023
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